01/10/25
NO CORRER DOS DIAS
Aveiro. Procuro habituar os sentidos aos sons e ruídos das
cidades que há muito não frequentava. Deixo-me ir na multidão, sem pressa e
diluindo qualquer naco de ansiedade. Procuro nos rostos e nos movimentos dos
que me rodeiam, compreender as angústias e os cansaços das rotinas do amanhecer,
quando o dia nasce e estende os seus braços para receber aqueles que procuram
no trabalho a necessidade de sobrevivência ou a ideia de felicidade. Todos os
dias parecem iguais. Deambulo pelo átrio da grande estação como se estivesse
alheia ao ambiente que vai circulando à minha volta. Olho para o amplo vidro do
quiosque e vou lendo os títulos. Detenho a atenção no jornal que tem por lema,
Erguer muros onde se abriam portas. Aparece um fundo negro, como se fosse o
resto calcinado de um longo incêndio quando a notícia são as futuras eleições
autárquicas. Talvez represente a escuridão que pesa sobre nós como um enorme
Zepelim representado por essa quadrilha ideológica que nos arrasta para a
selvajaria das ideias, do verbo e da aldrabice despudorada. Num canto desta
escuridão podemos ler como uma representante das ideias de taverna é obrigada
pelo tribunal – por enquanto ainda funciona – a corrigir uma das suas maldades.
Mas no fundo da página ainda é possível saber que o homem laranja acaba de
fundar a empresa Gaza Co. com esse inenarrável Tony Blair a CEO. Os direitos do
povo palestiniano reduzidos a um negócio presidido por alguém que não consegue
distinguir a Arménia da Albânia. Os criminosos do chamado Estado de Israel vêem
assim contemplado o morticínio que ainda não pararam. Não são apenas criminosos
de guerra, são-no de toda a humanidade e o único lugar que lhes deveria estar
reservado, era o do banco dos réus igual ao de Nuremberga. O ar do planeta
purificava-se com o seu desaparecimento. Por fim, os olhos pousam ainda na notícia
que nos diz que a Direita continua igual a si própria e ao que sempre foi,
entregando a propriedade comum, o património do Estado, ao delírio do bem
privado. Continuamos como no romance de Remarque, “A Oeste nada de novo”.
O comboio desliza sonolento mostrando-nos a velha cividade desta cidade que
nunca esquecemos. Balanceamos na cadência que vai parando e reiniciando a
marcha e quando alcançamos este lugar onde me vou deter o dia já se ergueu e as
pessoas, como personagens, traçam rotas cruzadas com os seus afazeres, aqui e
ali e mais além. Retenho o olhar sobre o edifício da antiga estação com as suas
portas e janelas e os diversos telhados que a cobrem e, naturalmente, a beleza
dos seus azulejos. É o que resta de um tempo imobilizado e pardacento. Quando
nos voltamos surge-nos a longa avenida que nos conduz aos primeiros espaços
habitados. Há muito que leva o nome de um médico e benemérito que é uma palavra
que sempre me aflige. Foi presidente da Câmara ao longo de um quarto de século,
com obra feita, ao que consta, tendo iniciado o mandato na primeira República e
entrado pela Ditadura adentro, aparentemente não se terão dado mal, o
benemérito e a Ditadura. Mas não é dele que tenho memória, mas de um outro
médico, um ilhavense que muito calcorreou por esta cidade, procurando curar os
corpos e despertar as almas e as consciências. Despediu-se de nós cedo demais
deixando-nos um recado que não deveríamos esquecer: “façam um mundo melhor,
ouviram? Não me obriguem a voltar cá”. Pelo caminho que as ondas levam,
estou em crer que Mário Sacramento bem terá de voltar. Avenida fora não me
cativa nem as guloseimas da cidade, nem os que por ela correm. Procuro na
lonjura do tempo as imagens que marcam os espaços, as épocas e as epopeias
humanas por mais singelas que possam parecer. Por longo tempo deixo o olhar
repousar sobre o edifício do antigo Cine-Teatro Avenida, lembrando o dias em
que a liberdade passou por ali, erguendo a voz contra os esbirros e desafiando
o que então era conhecido como “palhaços lacrimogéneos, capacetes de aço”,
donos da violência e protectores de uma Ditadura, que os bem-falantes agora
dizem, Estado Novo, que cada vez mais se afundava na miséria obscurantista de
uma moral lamacenta. Mas esta urbe hoje universitária ainda lembra uma
princesa, Joana de seu nome, virgem até à morte, irmã do Príncipe Perfeito
que a procurava para se aconselhar, e que regente do Reino chegou a ser. Por
muitos amada, a todos recusou e refúgio nos dominicanos, aqui procurou. Aveiro
protege-lhe a memória no Museu Municipal e em nome de freguesia. Sim, a cidade
também é as salinas, os doces conventuais, as antigas ruas de um tempo que a
viu nascer, mas não era esse o gosto que trazia de visita. Regresso à estação
que a viagem prossegue. Pena não teres vindo para enriquecer o que procurava. O
postal segue ainda hoje.
FERIDO NA ASA
O PASSADO RECÔNDITO
Há muito que os monumentos e arte rupestre mais primitivos me fascinam, quando a cultura humana era incipiente, no sentido mais amplo usado por António Damásio, de que tudo o que os homens fazem é cultura.
É sempre uma emoção observar um monumento funerário, seja ele designado por anta, arca, dolmen, lapa, orca, ou similar, constituído por enormes pedras ao alto, a servirem de suporte a uma grandiosa pedra (a mesa) que coroa a câmara, frequentemente coberta por uma protecção de terra e pedras na forma de mama (a mamoa).
É o caso do dolmen de Antelas, em Pinheiro, Oliveira de Frades, datado de há quase 6 000 anos, a nossa jóia da coroa que Pedro Sobral de Carvalho, da National Geographic Portugal, classifica como “a grande catedral do Neolítico, (considerando) que é o expoente da arte megalítica europeia, não existindo outro monumento conhecido que possua um tão grande e preservado conjunto de motivos pintados e gravados.”
Mas, utensílios líticos, como os bifaces, com mais de 200 000 anos, ou seja, do tempo em que terá surgido o Homo Sapiens, no chamado Paleolítico Inferior, que “podem considerar-se (segundo Gonçalo Cruz), os vestígios mais antigos da presença de populações do género Homo no território do actual Noroeste de Portugal.”, constituirão, por ora, os testemunhos culturais do passado mais longínquo.
Já a arte rupestre das grutas, como é o caso do Escoural, em S. Brissos, Montemor-o-Novo, e dos espaços ao ar livre, cujo exemplo mais famoso são as gravuras do Côa, com mais de 25 000 anos, datam do Paleolítico Superior, convencionalmente iniciado há cerca de 40 000 anos.,
Recôndito significa o âmago de qualquer coisa, o que está oculto. Em geral quanto mais antigo o pré-histórico, maior a dificuldade da sua decifração. Todavia, apesar de os menires, essas grandiosas pedras ao alto, algumas delas afeiçoadas ou com expressões artísticas, e os conjuntos de menires, chamados cromeleques, serem obra do homem do Neolítico, desde há 7 000 anos, não se sabe exactamente a sua função, pelo menos com o grau de certeza com a utilidade que atribuímos a um biface criado pelo homem do Paleolítico Inferior, há 200 000 anos.
O presente é fugaz, e o futuro é sugado, a cada momento, pelo passado, esse imenso repositório do tempo.
São a arqueologia e outras disciplinas que, tanto quanto é possível, nos revelam o passado pré-histórico, identificando, como se fosse uma escrita, objectos e expressões culturais reveladores do nível de desenvolvimento e do modo de vida das populações humanas ao longo das épocas.
Como não fascinar o conhecimento, ainda que impermanente, da vida dos nossos antepassados mais longínquos?
POESIA
Helena SerôdioREFLEXÃOA vida há-de extinguir-se, fugidia,E tudo há-de cair em derrocada,Tudo regressará ao caos do nada,Em tréguas convertido e cinza fria !Tudo soçobrará na fantasiaDe uma ilusão amarga e revoltada,Tudo será comédia angustiada,Frágil flor que fenece ao fim do dia !Mas além das brumas da incertezaE dos abismos fundos da tristeza,O amor trunfará eternamente.E de quanto passou e há-de passar,Apenas o amor há-de ficarComo um sonho sem fim e transcendente !...POEMAA minha almaCruzou-se com a tuaNo silêncio das palavrasQue dissemos...No espelho dos teus olhosVi-me nua...!Apenas um poemaEntre nós doisApenas um poemaE a tua alma,Porque o teu corpoInteiroVem depois...!
TEMPOS INQUIETANTES
Na sexta-feira passada o Major-General Carlos Branco, numa conferência realizada aqui no Porto, referiu que a Europa está a passar por tempos inquietantes. Eu digo que muitas partes do mundo estão a passar por tempos inquietantes. Além da Europa, a Ásia Ocidental e Oriental, a África, as Caraíbas, a América do Sul, o Ártico estão a passar por situações de guerras quentes, ou por instabilidades políticas e sociais, restos do colonialismo, com intervenções estrangeiras directas ou encapotadas, arrastando para a miséria e a morte milhões de pessoas.
Na Europa, os interesses derrotados na 2ª Guerra Mundial estão novamente a reagrupar-se para tentarem conseguir o que não tinham conseguido, e sacarem agora, sobretudo, as matérias-primas e a energia para recuperarem os investimentos que estão a efectuar na guerra e aumentarem as taxas de remuneração dos seus capitais. Mas, parece-me, estão cada vez mais assustados por estar a demorar demasiado tempo e estarem a ficar exauridos. O caminho é entrarem directamente na guerra ou aceitarem o que pode ser uma derrota.
Uma pessoa minha amiga, na semana passada, disse-me que está com muito medo do futuro. Não é de admirar. As pessoas estão a ser condicionadas por informações que, a maior parte das vezes, não têm nada a ver com a realidade. As vozes de quem comanda a política na Europa, sem qualquer contraditório, apontam para a iminência da guerra, que as pessoas vão ter que abdicar de benefícios que usufruem e para os quais pagam, pois os dinheiros terão que ser desviados para a guerra. É o grande capital a mandar nas nossas vidas. Mas não tem as mãos livres.
Vivemos um tempo de grandes transformações que vai ser longo. As pessoas devem acompanhar com muita atenção os acontecimentos do dia-a-dia pois fazem parte de um todo.
As lutas dos povos e dos trabalhadores estão em crescendo contra as políticas de exploração, em defesa da soberania, as manifestações de solidariedade por todo o mundo com o povo vítima da barbárie, as grandes manifestações internacionais contra a guerra e contra a degradação das condições vida e as grandes manifestações em Portugal contra o pacote laboral que pretende regredir as condições de trabalho para pior do que antigamente, e a favor da PAZ, faz-nos ter confiança que se avança para um novo mundo. Para isso os Trabalhadores, os Povos do mundo devem unir-se.
Há uma canção do século XIX, apropriada para os novos tempos e que muita gente já a esqueceu e que muitas mais nunca a conheceram.
“ A INTERNACIONAL foi composta em 18 de Junho de 1888 por Pierre Degeyter (1848-1932), operário de origem belga fixado com a sua família na cidade francesa de Lille. Naquele dia fora oferecido a Degeyter um livro de poemas de Eugéne Pottier (1816-1887), operário francês, membro da Comuna durante a qual foi eleito maire do 2º Bairro de Paris. Após o sangrento esmagamento da Comuna, em cuja defesa participou, Pottier partiu para o exílio durante o qual escreveria diversos poemas, entre os quais o que viria a constituir a letra de A Internacional.
É fundamentalmente a partir de 1896, após a realização do congresso do Partido Operário Francês realizado nesse ano em Lille e durante o qual foi tocado e cantado, que o hino se espalha por toda a França e pela Europa através de delegados estrangeiros presentes.
Não há memória da data da chegada de A Internacional a Portugal ou do autor da versão portuguesa da sua letra. É contudo claro que ela acompanha de perto o original francês, refletindo no seu fraseado a influência da literatura e poesia ligadas ao anarco-sindicalismo, maioritário no movimento operário português nas primeiras décadas do século passado.
Não se conhecendo qualquer registo fonográfico português do hino anterior a 1926 e à sua proibição pelo fascismo, é de admitir que a primeira gravação seja realizada para o LP “Cânticos Revolucionários em Português” gravada em Lisboa em 1975 pela editora Metro-Som (LP 105), com interpretação de “elementos dos coros da Fundação Calouste Gulbenkian e do Teatro S. Carlos e intervenção da Banda Portuguesa, Siegfried Sugg no acordeão e Daniel Louis em toda a percussão”. A direcção musical é de J. Machado e J. Gomes, seguindo os arranjos muito de perto as versões francesas então mais conhecidas, nomeadamente as popularizadas pelo Grupo 17.
Por altura da comemoração do 60º aniversário do Partido Comunista Português (1981), integrou-se no programa a produção e gravação de uma versão claramente portuguesa do que os estatutos do PCP definem como respectivo hino.”
Texto de Ruben de Carvalho
A INTERNACIONAL
De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada mais somos neste mundo,
Sejamos tudo, oh produtores!
Refrão
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Duma terra sem amos – bis
A Internacional.
Messias, Deus, chefes supremos,
Nada esperemos de nenhum!
Sejamos nós quem conquistemos
A Terra-Mãe livre e comum!
Para não ter protestos vãos,
Para sair deste antro estreito,
Façamos nós por nossas mãos,
Tudo o que a nós diz respeito!
Refrão